Jogos Vorazes: além do espetáculo sangrento

Explorando algumas das sutilezas por trás das obras de Suzanne Collins (e como tendemos a focar no que menos importa).

12/28/202310 min read

Quando eu pensava em Panem, nos distritos e na Katniss, a imagem mais forte que vinha à mente era a violência e injustiça dos Jogos Vorazes: vinte e quatro jovens — chamados “tributos” — em uma arena de espaço limitado, à la Battle Royale, lutando entre si até que haja um único tributo vivo. Devo admitir, porém, que só dei uma chance aos livros recentemente, mais de 15 anos após o lançamento do primeiro título, e os filmes assisti ainda muito novo, por isso não lembrava de muita coisa além das lutas.

Mas agora, tendo lido o livro pela primeira vez, percebo que há muito mais na história além dos Jogos Vorazes. Na verdade, considero que os Jogos sejam a parte menos emocionante, servindo apenas como intensificador e plano de fundo para uma história que gosto de descrever em uma única palavra: trágica.

Para demonstrar isso, começo pelo filme (apenas o primeiro).

O filme e sua atmosfera peculiar

Assistir a um filme de 2012 no final de 2023 foi, assim como assistir a qualquer filme não atual, uma experiência interessante. É fácil identificar outro tipo de ritmo, outro tipo de diálogo, outro tipo de filmagem, de cenários, de músicas, de tudo. Mesmo não sendo tanto tempo atrás, é quase como uma era completamente diferente.

Logo no começo do filme, pensei que eu estava ficando fresco para ver filmes mais antigos — e olhe que nem é justo chamar esse de antigo — , pois estava sentindo algo de diferente em Jogos Vorazes. A "vibe", a sensação, a atmosfera do filme é muito diferente daquela que eu me lembrava. Como mencionei no início do post, eu já tinha assistido a alguns dos filmes (o primeiro de certeza) quando mais novo; contudo, minhas memórias não estavam de acordo com o que vi. Na minha cabeça a história era mais alegre, leve, despreocupada — sim, com suas cenas de ação e aventura, mas ainda assim uma história descontraída, apesar de tratar-se de uma distopia.

Mas a realidade não podia ser mais diferente: o filme começou com silêncio, poucos diálogos, pouca música; e talvez sejam estas as razões do meu estranhamento. Atualmente não se fazem filmes quietos; todos falam quando bem entendem e mesmo a menor cena tem uma música de fundo para gerar uma certa emoção no público.

Jogos Vorazes não tem isso, e talvez o melhor exemplo seja a cena da colheita. Ao ver sua irmã caminhando em direção ao palco após ter sido escolhida, Katniss entra em desespero. Eis a visão que o livro nos dá sobre o estado mental de Katniss:

Uma vez, quando eu estava de tocaia em uma árvore, imóvel, esperando a caça aparecer, adormeci e caí de costas no chão de uma altura de três metros. Foi como se o impacto tivesse expulsado cada centímetro cúbico de ar de meus pulmões. E fiquei lá deitada, lutando para respirar, para me mover, enfim, para fazer qualquer coisa. É assim que me sinto agora, tentando lembrar como se respira, incapaz de falar, totalmente atordoada, enquanto o nome parece quicar no interior de meu crânio. Alguém está segurando meu braço, um garoto da Costura, talvez eu tenha começado a cair e ele me pegou.

No filme, aos gritos, Katniss se oferece como tributo no lugar da irmã. Ela fizera de tudo para que Prim tivesse menos chances de ser sorteada (mais detalhes disso no livro), porém, como ela mesma diz, “não adiantou nada.” É uma cena importante por dois principais motivos: além de expor Katniss à trama principal, o que coloca todo o enredo em movimento, esse autossacrifício nos permite enxergar um pouco do coração de Katniss. Ela se preocupa muito com a própria família. Nos livros, a essa altura do campeonato, já sabemos que ela caça desde cedo, pois é a única forma de sustentar a casa.

É um momento instintivamente importante, feito para que qualquer pessoa entenda o impacto das decisões de Katniss. No entanto, não há música nenhuma para acompanhar a cena. E isso é muito, muito raro, principalmente hoje em dia. Não consigo pensar em muitos filmes que, durante uma cena de forte carga dramática, optam pela ausência de trilhas sonoras. Não seria um desperdício gigantesco? Esses são os momentos ideais para enraizar uma música no fundo da memória dos telespectadores.

Ainda assim, Jogos Vorazes optou pelo silêncio musical. Katniss grita e toma o lugar de Prim, que também grita em desespero, lutando para ficar ao lado da irmã. Elas são separadas; Prim continua gritando. E nenhum sinal da trilha sonora. Ouvem-se apenas as falas, os passos, os movimentos.

É algo que se repete durante o filme inteiro. Em vários momentos onde eu, acostumado aos filmes atuais, esperava encontrar uma música dramática para acompanhar um momento importante, eis que ou não havia música alguma, ou esta era quase imperceptível.

Espero que isso seja o suficiente para entender a atmosfera do filme. Ele não tenta dramatizar os momentos com músicas ou frases e discursos bem elaborados — ele simplesmente mostra o que aconteceu. Às vezes Katniss está olhando para o nada, desconfortável, tentando se achar em meio àquele caos, e nunca temos muita certeza sobre o que ela está pensando (somente se lermos o livro).

E aí entram os Jogos em si: não há nada de leve e despreocupado neles. Katniss não está numa luta épica contra um governo distópico, não está na linha de frente de uma revolução — ela está tentando sobreviver. Aliás, é o que tem feito durante toda a sua vida (mas isso falarei no próximo tópico), e não há nada de eletrizante ou frenético no tempo em que ela passa na arena.

Não era o que eu pensava de uma distopia quando mais novo. Para mim, a beleza estava nesse exterior, nessa luta entre duas frentes, na batalha em uma arena, nas artimanhas que um protagonista desenvolve para sobreviver, nos planos bem pensados que vencem um governo, etc. A beleza estava, portanto, no enredo, na trama. Mas acredito que a verdadeira beleza das histórias em geral — e também no caso de Jogos Vorazes — não está no enredo, que é o que acontece, mas nos personagens. Uma história é sobre como o que acontece afeta os personagens, e é aí que começo a falar da Katniss.

Uma heroína não convencional

Quando pensamos num herói clássico — no sentido de protagonista, aquele que vai à luta —, pensamos numa pessoa com boas morais, boa distinção do que deve ser feito, bom relacionamento com todos ao seu redor, enfim, uma pessoa que nasceu para vencer. Katniss, porém, não se encaixa nesse ideal.

Antes de iniciar, é bom deixar claro: não é essa “não-convencionalidade” que faz da Katniss uma boa protagonista. Isso tem confundido a mente de muitos escritores hoje em dia, de forma que fazem de tudo para quebrar padrões e subverter expectativas, pensando que estarão, assim, criando algo bom e novo.

Katniss não é uma boa protagonista por falar pouco e ser durona; é uma boa protagonista porque é humana. Tem falhas, tem medos, anseios, objetivos, etc. Isso é algo que muitos escritores esquecem. Katniss ser habilidosa com o arco e flecha não é o que marcou a personagem para mim; é quem ela é e o que sente. O arco e flecha está no exterior, enquanto o que nos conecta a ela está no interior. E é simples assim: essa parte interior é bem mais interessante que a exterior. Ela pode passar por vinte Jogos Vorazes, mas o conflito externo sempre servirá apenas para expor a beleza do conflito interno — e nesse ponto Katniss tem muito a ser comentado.

Enquanto lia o livro, fiquei encucado com alguns aspectos da personalidade de Katniss. Tendo estudado sobre vários distúrbios psiquiátricos, percebi que o caso de Katniss lembrava muito os casos clássicos de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) — apesar de, pelo menos no primeiro livro, não haver pistas suficientes para um diagnóstico pleno, quadro que muda completamente nos livros seguintes.

Embora eu goste muito dessa área, não cabe a mim julgar, agora, o quão bem Katniss representa as pessoas que realmente sofrem do TEPT. Prefiro aproveitar a jornada pela mente dela, o que é relativamente fácil de fazer, uma vez que o livro é inteiramente narrado em primeira pessoa, sempre de sua perspectiva.

A vida de Katniss nunca foi das mais belas. Seu distrito passa fome; as pessoas morrem constantemente por isso. Sua casa sempre tinha o que comer por causa de seu pai, que caçava e a ensinou a fazer o mesmo. Certo dia, contudo, devido a um acidente nas minas, perdeu seu pai. A mãe, em vez de assumir mais responsabilidades para cuidar da casa, entrou numa terrível depressão, deixando tudo nas mãos de Katniss. Coube a ela caçar e ou cozinhar, ou vender os produtos da caça. Quando não bastava, pegava grãos em troca de aumentar suas próprias chances de ser sorteada para os Jogos Vorazes. Uma fase inteira de sua vida baseada em renúncias, risco aumentado de participar dos jogos, risco de ser presa por caçar ilegalmente, etc. Nas palavras dela:

Uma vez, quando eu estava de tocaia em uma árvore, imóvel, esperando a caça aparecer, adormeci e caí de costas no chão de uma altura de três metros. Foi como se o impacto tivesse expulsado cada centímetro cúbico de ar de meus pulmões. E fiquei lá deitada, lutando para respirar, para me mover, enfim, para fazer qualquer coisa. É assim que me sinto agora, tentando lembrar como se respira, incapaz de falar, totalmente atordoada, enquanto o nome parece quicar no interior de meu crânio. Alguém está segurando meu braço, um garoto da Costura, talvez eu tenha começado a cair e ele me pegou.

Isso tudo, que para muito é apenas o passado da protagonista, é, penso eu, a melhor parte da história. Sabendo disso, cada interação, pensamento, acontecimento e ação ficam mais interessantes, carregam mais peso.

Katniss também relata ter pesadelos recorrentes, sempre algo relacionado ao pai, à mãe e a Prim. Não é raro vê-la relacionando um acontecimento no presente com algo que já aconteceu antes. São memórias que não saem da cabeça. Eis um exemplo:

Peeta Mellark e eu ficamos em silêncio enquanto o trem passa a toda a velocidade. O túnel parece interminável, e, quando começo a imaginar as toneladas de rocha que me separam do céu, sinto um aperto no peito. Eu odeio ficar emparedada dessa maneira. Isso me faz lembrar das minas e de meu pai, preso naquela armadilha, incapaz de alcançar a luz do sol, enterrado para sempre na escuridão.

Katniss mal fala com os outros e demora a confiar nas pessoas. O que é isso senão uma consequência direta de tudo que passou? Se teve de confiar apenas em si mesma para manter sua casa de pé, não é lá muito estranho pensar que ela tem dificuldades para confiar em outras pessoas (ela vai longe a ponto de ficar quase metade do livro desconfiando das verdadeiras intenções de Peeta, e sempre discute bastante consigo mesma se uma nova pessoa quer o seu bem ou o seu mal). Eis mais um exemplo, desta vez com relação à Avox — leia-se “escrava por razões políticas” — que arrumava o seu quarto durante as preparações para os Jogos:

Eu a odeio também, com aqueles olhos de reprovação que estão me chamando de covarde, de monstro, de marionete da Capital, não só agora como também naquela época. Para ela, a justiça finalmente está acontecendo. Pelo menos minha morte vai ajudar a compensar a morte do garoto na floresta.

Quer ver como é algo psicológico e não muito palpável? Na mesma página, após um ou dois parágrafos, Katniss muda de opinião:

Depois de retirar o lixo e de limpar o que restara de comida, ela arruma minha cama. Pulo para baixo das cobertas como se fosse uma garotinha de cinco anos de idade e deixo que me coloque para dormir. Em seguida, ela vai embora. Quero que fique até que eu caia no sono. E que ela esteja presente quando eu acordar. Quero a proteção dessa garota, mesmo sabendo que ela nunca contou com a minha.

As ações e os pensamentos presentes de Katniss refletem o seu passado, e isso é interessantíssimo de se ver. O que acontece quando você pega uma garota de 16 anos (e com toda essa carga emocional) e joga dentro de uma arena contra outros 23 competidores? O que ela pensa de si mesma e dos outros? Com quem fará alguma aliança, com quem terá conflitos desde cedo? É disso que se trata a história.

E então?

O que quero dizer com tudo isso é o seguinte: muitas vezes, principalmente na ficção especulativa (ficção científica, fantasia, terror, etc.), tendemos a dar mais importância ao externo, o plot, do que ao interno, os personagens. E isso serve tanto para os escritores, quanto para os consumidores da história.

Sejamos honestos: é possível que, se tivéssemos de ler as sinopses e escolher entre dois filmes, optaríamos pelo que parece mais apelativo. E “a história de uma garota de 16 anos com possíveis distúrbios psiquiátricos” não é uma descrição tão apelativa quanto “em um futuro distópico, 24 jovens lutam numa arena até a morte". Não é errado o marketing do filme preferir a segunda abordagem, pois, como mencionei, é o que garante os melhores resultados.

Assim, tentemos nós, os consumidores dessas histórias, aproveitar além do que é meramente externo. Além de uma boa distopia para refletir sobre a sociedade atual e possíveis futuros, Jogos Vorazes é uma boa oportunidade para refletir sobre a humanidade no sentido mais interno. Por isso é sempre muito agradável reler e reassistir às histórias que consumimos quando mais jovens, em busca de detalhes que podem ter passado despercebidos.

Você chegou ao fim desta postagem.
Clique no botão abaixo para ver as nossas outras publicações: